O papel primordial da Cultura

Uma das grandes conquistas da civilização foi a individuação humana. Os grandes contratualistas – Hobbes, Locke, Rousseau – cada um à sua maneira, desenhou o ser humano primeiro como um indivíduo completo e só depois como um problema social. No início, somos um, livres como em Hobbes, felizes como em Rousseau, dotados de direitos como em Locke. Freud certamente riu ao ler essas teorias, mas não discordou inteiramente delas. A capacidade humana de produzir um Eu de vontade e de controle, mesmo que não soberano, é uma peculiaridade da nossa espécie e um resultado de cada época e lugar. Quanto menos ignorante e repressor for o ambiente, mais é possível sublimar as forças pulsionais em atividades prazerosas e não destrutivas. A Cultura, portanto, é a saída para a humanidade; e por Cultura devemos entender criação do que não existe e desenvolvimento e refinamento do que existe, agregando camadas sobre camadas, depois filtrando e depurando, para enfim usar ou expor, tornando a vida mais prática, alegre e bonita.

A Cultura afeta nossos gestos e nossa relação com o Outro. Afinal, desejo sem peias é o estado de guerra. Mas o desejo estabilizado pela atividade incessante do deslocamento ou da multiplicação dos objetos traduz-se como capacidade de produção de mundos que tornam a vida mais rica porque mais interessante. Uma qualidade da pessoa culta é justamente a abertura para as diversas manifestações humanas: quanto mais desafiadoras, quanto mais instigantes, quanto mais exigentes, melhor. Um livro, uma peça, uma ópera, um filme, uma conversa, um relacionamento. Nesse processo, a simplicidade não se confunde com a rudeza, com o mal acabado, com o desleixo. Ao contrário, a simplicidade é a quintessência do refinamento. Obra de muito apuro, atenção, treinamento: um gol, um verso, uma foto, uma cena, um passo de dança, um convite, um prato, um drink, um beijo. E viver assim e viver para isso é tudo o que o mundo precisa.

Uma educação para a Cultura exige imprimir no indivíduo a história desse longo trajeto de criação e aprimoramento, mas imprimir com tinta removível, como uma pele de cobra ou uma crisálida. Alimentado pela vivência das histórias das grandes obras, a Cultura não espera repetição, mas inspiração para novos voos. Educar para a Cultura é narrar a beleza dos esforços das pessoas – e isso requer envolvimento, tempo, disposição, esforço, prática. É como a pipa em uma tarde de pouco vento. Ou com muito vento. De uma forma ou de outra, é a habilidade de quem a conduz que permite sua exibição para os olhos dos admiradores. Educar para a Cultura não pressupõe currículo, mas a intenção de compartilhar a experiência criativa e embelezadora do mundo com quem se dispuser.

Um indivíduo tem um nome, um nome que escolhe para si. E veste-se como se sente bem e porta-se da forma que espera ser visto, e age como a liberdade permite, um narciso que só tem por limite o olhar do outro e sua voz imperativa: “sim, eu quero; não, não quero”. Um mundo de Cultura é o melhor – penso que o único – anteparo contra a barbárie, que vê o indivíduo como parte de uma espécie, limitado pela Biologia, determinado a agir porque é assim que se deve, condenado a repetir a tradição de gestos e usos, sem criar ou desconstruir nada. A Cultura é o melhor antídoto contra a hierarquia que não se recicla, repetindo os mesmos chavões e entoando os mesmos hinos, presos a uma nostalgia que não passa de lembrança encobridora de velhos traumas de infância.

Sem Cultura não há resistência possível. E não adianta falar em trincheiras e em armas, em vingança ou castigo. Uma pessoa que construiu uma vida cheia de filigranas intrigantes fica meio ridícula com esse discurso, como uma roupa frouxa ou apertada demais. Ou nos impomos com palavras e gestos cheios de graça e alegria ou é melhor que a luz se apague de vez.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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